É armação! Golpes nas redes prometem óculos de graça e escondem cobrança por lentes q4j3y
'VERIFICA' IDENTIFICOU MAIS DE MIL PUBLICAÇÕES PATROCINADAS QUE SIMULAM BENEFÍCIOS SOCIAIS PARA ENGANAR USUÁRIOS SEM DAR NA VISTA 5v455y
Mais de mil postagens veiculadas no Facebook e no Instagram enganam usuários com promessas de exame de vista e armações de óculos de graça em anúncios irregulares. Os perfis alegam ser ações sociais privadas voltadas à população de baixa renda, mas usam indevidamente termos e imagens que remetem a programas do governo federal, como "Bolsa", "Cartão Previdenciário" e "Benefício", por exemplo. 706i5q
Usuários relatam que, na realidade, a gratuidade da armação de óculos está condicionada à compra das lentes no estabelecimento. O valor das lentes pode chegar a R$ 1 mil. O fato é omitido das postagens anunciadas nas redes sociais, que muitas vezes ofertam o modelo como "brinde".
As ações anunciadas atendem por nomes variados, como Projeto Enxerga, Brasil que Enxerga, Serviço Social de Saúde Visual, Exame de Vista Popular, Comunidade Visão Solidária, dentre outros. No Reclame Aqui, há dezenas de relatos de pessoas que alegam ter sido enganadas.
As postagens patrocinadas na Biblioteca de Anúncios da Meta mostram que os conteúdos omitem detalhes do consumidor, tentam relacionar às ações ao governo e compartilham falsos relatos de atendimento. Veja abaixo.
'Projetos' condicionam 'brinde' da armação a compra de lentes
Os anúncios online prometem exames de vista gratuitos e armação de óculos sem custos. Para agendar, o usuário é orientado a clicar no link divulgado na publicação. Os conteúdos costumam direcionar a um número de WhatsApp ou a um site destinado ao programa.
O Verifica entrou em contato com um dos números de WhatsApp para questionar o funcionamento do projeto e os anúncios veiculados nas redes sociais. Uma mulher identificada como consultora da clínica respondeu em áudio para dar início ao atendimento. Horas depois, o número enviou a seguinte mensagem: "Sua vaga está quase garantida! Não perca essa oportunidade exclusiva. Podemos prosseguir com seu atendimento?".
Relatos no Reclame Aqui alegam que, embora o exame seja realizado sem custos, a receita fica retida com funcionários da clínica, que encaminham o paciente a uma ótica parceira. Lá, o consumidor pode receber uma armação gratuita. Os anúncios omitem, contudo, que o cliente deve comprar as lentes no estabelecimento para receber o modelo do óculos sem custos.
"O exame de vista foi realizado normalmente, mas após o procedimento fui direcionada a uma loja ao lado para seguir com a suposta entrega da armação. Ao chegar na ótica, pedi a receita do exame como havia sido prometido e fui tratada com grosseria. Ou seja, só entregariam a receita e a armação se eu comprasse as lentes com eles", relata uma das reclamações.
Outros registros no site denunciam que os óculos não são entregues, mesmo após o pagamento (veja aqui e aqui). Consumidores relatam, ainda, que recebem os óculos com defeito na armação ou com lentes incompatíveis com o grau correto (veja aqui).
Cliente recebeu prescrição de lente errada
Uma das clínicas que divulga ser parceira de projetos anunciados nas redes sociais é processada por práticas abusivas e venda casada. Quem representa a consumidora que alega ter sido lesada pela empresa é a advogada de Direito do Consumidor e Direito de Família Ana Paula Maia Angélico.
Ao Verifica, Ana Paula relatou que a cliente foi abordada na rua para realizar um exame de vista. Segundo a advogada, a consulta teria durado de 5 a 10 minutos. A cliente alega que o profissional prescreveu uma lente corretiva para corrigir a visão para perto. A consumidora afirma, sempre ter utilizado lentes para auxiliar na visão para longe.
Ao término da consulta, de acordo com Ana Paula, a cliente foi direcionada à ótica por um funcionário, que estava com o receituário das lentes. Lá, a armação foi oferecida gratuitamente, desde que a confecção das lentes fosse feita no local. O valor total era de R$ 1 mil. Ela não teve o à receita.
Por estranhar o resultado do exame de vista, a cliente marcou uma consulta em um oftalmologista. Na nova avaliação, o médico relatou que ela precisava apenas de lentes de longo alcance, e que o uso de um grau sem necessidade poderia prejudicar sua visão.
Depois disso, a cliente voltou à ótica para reclamar, e só então descobriu que tinha sido atendida inicialmente por um optometrista, não por um oftalmologista. O optometrista não tem formação médica.
Na petição do processo, a advogada Ana Paula alega que a ação da clínica e da ótica configura venda casada. A prática é proibida pelo Código de Defesa do Consumidor, no artigo 39.
Na contestação, a defesa da clínica alega que, se não houve cobrança no exame de vista realizado, não há como acusar de venda casada. A defesa diz, ainda, que "não há na campanha publicitária qualquer situação que induza o consumidor em erro".
O Verifica tentou contato com a clínica mas não obteve retorno.
Postagens patrocinadas tentam relacionar projetos ao governo
O Estadão Verifica identificou 960 patrocínios ativos relacionados ao "Projeto Enxerga" na Biblioteca de Anúncios da Meta. A busca foi feita no dia 28 de maio. As postagens afirmam que o programa já teria transformado "milhares de brasileiros" ou que as vagas seriam limitadas.
Uma das páginas que promove o projeto "Exame de Vista Popular" tem 200 anúncios ativos. A transparência da página informa que houve três mudanças de nome ("Dr. Enxerga Bem Zona Leste", "Projeto Olhar do Bem - São Vicente" e "Exame de Vista Popular").
As publicações, no geral, oferecem exames de vista gratuitos e "armação completamente grátis". Outras postagens alegam que a armação seria um "brinde". Os conteúdos não sinalizam que a obtenção do modelo do óculos sem custo está condicionado à compra de lentes.
A reportagem localizou pelo menos seis páginas com variações do nome "Projeto Enxerga SP", sendo que quatro parecem estar vinculadas a uma mesma clínica. Há também ao menos dez variações de páginas nomeadas como "Projeto Enxerga Brasil". O Verifica mapeou, ainda, nove relacionadas a "Serviço de Saúde Visual", e pelo menos 25 com variantes de "Óculos Solidário".
Outro anúncio que tenta confundir usuários usa o nome de "Cartão Previdenciário Social de Auxílio Visual". A página que hospeda essa propaganda tem mais de 100 anúncios ativos na Biblioteca da Meta. Pelo menos 22 dessas postagens patrocinadas usam o termo "Auxílio Visão", "Cartão Previdenciário" ou "Bolsa Visão". Veja abaixo.
Uma das páginas mapeadas pelo Verifica imita a identidade visual do governo federal. O perfil patrocina 59 anúncios.
A estratégia de simular imagens do governo não é recente. Projetos semelhantes já foram desmentidos por gestões municipais e agências de checagem por confundirem usuários. Há relatos registrados no Reclame Aqui, por exemplo, que atribuem o projeto de óculos ao governo.
Em 2023, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) da Prefeitura de São Paulo informou que não tinha relação com programas de distribuição de armações. A Prefeitura informou que as imagens circulavam com nomes como "Programa Visão Solidária", "Visão para Todos", "Óculos do Bem", "Enxerga São Paulo" e "Óculos para Todos".
Em 2024, o Jornal da Record noticiou que anúncios atribuíam falsamente o "Projeto Enxerga São Paulo" ao governo de São Paulo. Naquele mesmo ano, o Estadão Verifica mostrou que postagens usavam foto do Poupatempo para ar a impressão de que os exames eram ofertados pelo poder público. As publicações alegavam que as imagens eram "meramente ilustrativas".
Neste ano, ainda circulam imagens que tentam relacionar as "ações sociais" a projetos do governo. A Prefeitura de Osasco, em São Paulo, alertou que anúncios nas redes sociais sobre um "Mutirão de Saúde Visual" não tinham relação com a gestão do município.
Ao Verifica, o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon-SP) orientou que os consumidores tenham cautela com ofertas relacionadas a qualquer programa social. "Nas situações em que se engana, a orientação é registar um Boletim de Ocorrência numa delegacia de polícia, que é o órgão competente para realizar as investigações criminais", informou.
Relatos criados por Inteligência Artificial
Além das postagens patrocinadas, os projetos tentam captar a atenção dos usuários com vídeos criados por inteligência artificial (IA). Em uma gravação publicada por uma das páginas, uma senhora parece relatar sua experiência positiva com o projeto.
"Para você que mora em São Paulo, sabia que é possível cuidar da sua visão sem gastar nada? Descobri isso recentemente e preciso compartilhar com vocês", diz. "Fui super bem atendida, fiz meu exame de vista totalmente gratuito e pra minha surpresa ainda ganhei uma armação de óculos linda, sem pagar nada".
O vídeo, contudo, tem nítidos indícios de geração por IA. A fala é robotizada e os movimentos da boca não aparentam ser naturais. O fundo desfocado também é uma das evidências de falsidade.
A reportagem submeteu o vídeo a ferramentas que afirmam detectar o uso de IA em mídias e áudios, como o Hive Moderation e o Hiya/InVid. Os dois apontaram para o uso da tecnologia.
Em outro vídeo patrocinado, uma idosa parece divulgar o "Projeto Óculos Solidário" para pensionistas e aposentados. O conteúdo também apresenta evidências de que foi gerado por IA, como os movimentos da boca incompatíveis com a fala. Veja abaixo a análise do Hive Moderation.
O mesmo vídeo foi republicado e patrocinado mais de uma vez. Na Biblioteca de Anúncios da Meta, o Verifica identificou pelo menos 36 conteúdos iguais. Veja abaixo.
Diferentes sites com a mesma proposta
Ao procurar no Google pelo nome "Projeto Enxerga", o mecanismo de busca retorna diferentes sites com a mesma proposta. Pelo menos quatro sites identificados pelo Verifica são patrocinados na plataforma de pesquisa.
Assim como os anúncios nas redes, as páginas buscam engrandecer o projeto. "Já foram +200mil beneficiados com exames de vista e armações para óculos de grau GRÁTIS", alega um dos sites.
O site informa que "tanto o exame quanto a armação de óculos são 100% gratuitos para os beneficiários cadastrados no projeto". Mas acrescenta que o consumidor tem a "chance de levar uma armação de sua escolha, com garantia de 1 ano, disponibilizada pelas óticas parceiras mediante a compra das lentes". Esse detalhe, no entanto, é omitido das diversas postagens patrocinadas no Facebook e Instagram.
Muitos dos projetos anunciados são hospedados em sites sem selo de segurança. O certificado é um protocolo que viabiliza criptografar a comunicação entre o usuário e o servidor.
Outros sites são recentes. Um dos sites verificados, por exemplo, foi criado há apenas 3 meses. É comum que sites fraudulentos tenham pouco tempo de vida.
Prática é repudiada por Conselho de Optometria
O Conselho Brasileiro de Óptica e Optometria (Cboo) comunicou ter "total discordância com as práticas noticiadas". A entidade informou que o Código de Ética dos profissionais associados impede a venda casada e a omissão de informações ao consumidor.
O Código de Ética considera uma infração condicionar a prestação de serviços de optometria à compra de um produto, "mesmo que em forma de desconto ou gratuitamente".
O conselho afirmou notificar campanhas suspeitas aos departamentos de vigilância sanitária e ao Procon. Em 2024, a entidade iniciou uma campanha de combate à venda casada, intitulada "Se não é por solidariedade, não é grátis". O material afirma que a associação não compactua com a "prática ilegal" de oferecer consultas gratuitas apenas para emitir receitas atreladas a óticas.
O Cboo ressaltou que existem, de fato, atendimentos que têm caráter beneficente, com doação de consulta e também de óculos. "Vários deles, inclusive, realizados sob nossa organização em parceria com instituições como Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Itamaraty, municípios, dentre outros", afirmou, em nota.
